O Bule

Sim, prezado, será uma descrição segura e inócua de como as coisas funcionavam nos meus bons tempos de atividade, tempos em que a minha alma era o chá preto com maçã.

Eu era lembrado e saía do armário em 6 aniversários por ano (pai/mãe/filha/filha/filho/filho). Mesmo na época de aniversário de criança, sempre vinham aquelas tias, avós e gente mais velha que se sentavam na mesa para tomar o chá preto Tender Liv com pedaços de maçã e quartos de rodelas de limão num pires em separado para colocar nas xícaras (a gosto). Além do açúcar. Claro. No açucareiro. Óbvio.

Essa era a minha função: servir o chá. Ora, eu era o bule! O mais majestoso e rígido personagem da mesa.

E não vou falar dos meus colegas de turno: pires, xícaras, pratos médios e o açucareiro (tinham todos o mesmo uniforme florido em cores pastéis desenhado em porcelana). Todos faziam barulho, ainda mais quando a colherinha se insinuava dentro da xícara.

Eu tenho a ponta do meu bico em formato de pescoço de cisne quebrado, meu único defeito. Mas o que eu quero deixar bem registrado é que a minha voz se fazia no tinir da tampa com o bule. A minha tampa tem uma saliência na parte inferior, uma guelra que impede de cair se eu for invertido ou demasiado inclinado. Coisa de porcelaneiros da velha guarda, que trataram as minhas formas com maestria. E o bater dessa guelra nas paredes da boca emitiam um som, enquanto o resto da tampa emitia outro mais grave quando encaixado na boca. E a quantidade do líquido chamado chá preto Tender Liv que entrava e saía do meu corpo também influenciava na percussão.

Eu acho por demasiado estranho relatar essas coisa depois de tanto tempo, com tantas daquelas mãos que me serviam hoje embaixo da terra. Talvez eu esteja mais morto do que as pessoas dessas mãos. Talvez até que alguns leitores estejam mais mortos do que eu e os que estão sob a terra, aqueles que me tocavam com afeto ("o chá ainda tá quente?"). Acho até indelicado lembrar da minha alma, o chá preto Tender Liv, da caixinha vermelha, que já deve ter sido assassinado pelo isotônico.

Eu estou nu aqui. Envergonhado. Deslocado. Obrigaram a narrar histórias e nem me perguntaram se estaria confortável. 

Sem utilidade, esquecido em uma caixa poeirenta, ainda tendo que contar detalhes da minha memória enquanto vocês esperam avidamente o fim do relato pra assistir a sei lá o que vocês assistem hoje em dia (eu saí da caixa faz pouco tempo e não tive muito contato com esses anos dois mil, e nem pretendo ter, obrigado).

Me sinto ridicularizado. Fui sequestrado e estou sendo molestado psicologicamente.

Porque se eu perguntar pra vocês "o que querem realmente de mim?" será um desconforto para a narrativa, vocês pensarão em respostas e desviarão totalmente o foco que darei para a torta de banana (que não é essa bobajada que vocês chamam banoffi, como outro dia escutei, não! É uma torta com bananas caturras cozidas que formam um creme que vai sobre bolachas tipo champanhe). A torta de banana, os canudinhos com carne moída (e agora vem você dizer que no canudinho vai maionese, azar é o seu! Quem mandou nascer longe dos Pampas?), os pastéis, sanduíche aberto, brigadeiros (quando era festa de criança), pizza de sardinha de fôrma feita no forno à lenha, rosca de polvilho (no forno idem) e todo o conjunto de mãos, cabeças, conversas, talheres, toalha de mesa, "alcança tua colher" (limpa na calça e coloca na xicara), louça e risadas e ESSE!, esse era meu entorno. Meu contexto histórico. Meu zeitgeist. Presença em retrato contanto que câmera não temesse. 

Outro dia escutei uma boa, antes de uma festa de aniversário, olhem essa: o Aifudi chegou trazendo kit festa. Não sei quem é Aifudi, deve ser um sírio-libanês confeiteiro, famoso, só sei que kit festa deve ter gosto de papelão, além de ser frio, disforme, sem sabor. Mini-kibe. Mini-esfiha. Mini-dog. Mini-doguinho. Mini-doguezinho. Do tamanho de um nariz. Cheirando à gordura, minha dona ficava na cozinha fritando os pastéis, montando os sanduíches abertos, abastecendo a mesa, mesmo em seu próprio aniversário, e trazia tudo rindo de avental sujo. Certeza Aifudi não tinha nem nascido nessa minha época, esse millenial que deve ser um moço bacana e que não conhece uma rosca com nata, pão de milho com schimia, linguiça cozida ("corta um pedaço um pedacinho").

Estou perdendo meu tempo aqui, minha sinceridade deve ter fatiado o leitor sensível como espátula na torta de banana então vou voltar pra minha caixa pois aqui fora está tudo muito escuro. e bons encontros virtuais para vocês. Meus votos são de Insípidos aniversários a todos, que boas pílulas lhe acolham. Muitas felicidades, muitos anos de

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